quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O NEGRO NA HISTÓRIA DO PARÁ (MANUAL DO PROFESSOR)

Por Ariel Feldman

            Em primeiro lugar, cabe ressaltar que a importância da população africana na formação do Pará foi pioneiramente revelada por Vicente Salles, em 1971, numa virada historiográfica que suscitou uma série de pesquisas que ainda hoje são realizadas. Arthur Cézar Ferreira Reis, prefaciando a 1ª edição de O Negro no Pará sob o regime da escravidão (1971), resume bem a importância dessa obra:
A presença do negro na Amazônia constituiu, durante muito tempo, assunto desprezado, em termos de importância significante que teria essa mesma presença. O que se sabia não permitia a verificação mais ampla do papel que o negro africano pudesse ter desempenhado na região, onde as lavouras – do tipo daquelas do nordeste nos ciclos da cana, do algodão e do tabaco, das províncias fluminense e paulista, no ciclo do café, como era no Brasil-Central (Minas, Mato Grosso e Goiás), no período mais intenso da exploração do ouro e diamantes – eram lavouras sem a projeção das outras. Amazônia integrava-se no império português na aventura do droga do sertão. (...)Nessa aventura, a mão-de-obra, fácil, abundante e a única que se poderia mobilizar com sucesso imediato, era a mão-de-obra dos aborígines.
(...)
A bibliografia sobre a presença africana na Amazônia, consequentemente, nunca foi expressiva (...). A bibliografia (...) [era] de uma pobreza franciscana e que não conduzia senão àquela ideia primeira – o negro, na Amazônia, não representava um papel na dinâmica-social, cultural e econômica.
(...)
O livro que agora se edita (...), de autoria de Vicente Salles, vem situar o problema em seus devidos termos(...). Ao invés de uma presença insignificante, a do negro, na verdade fora, senão maior em conflito com a indígena, de uma significação ponderável, muito ponderável. Vicente Salles, com o Negro no Pará, pretende, escreve ele, apresentar uma “interpretação”. Pretende que o negro “não deixou de plasmar aí sua personalidade, de influir étnica e culturalmente, além de constituir durante todo o regime da escravidão, o suporte da economia agrária”. (Apud. SALLES, 2005).
             Em segundo lugar, cabe ressaltar, que esse material, O Negro na História do Pará, tem como um dos objetivos entender o negro como um agente ativo na história. A ideia é romper com uma visão que apenas enxerga o escravo como vítima passiva. Sem negar o sofrimento e a violência de uma sociedade escravista, mas também sem conferir a esse aspecto o lugar central desse material, objetiva-se enxergar o negro como parte do processo histórico. Nesse sentido, ganha destaque a redação criativa. Nessa atividade, o aluno se coloca no lugar de uma criança escrava em fuga, narrando, em primeira pessoa, o papel de agente histórico que essa pessoa exerceu.
            Em terceiro lugar, é preciso tentar responder a uma pergunta que muitas vezes é mal respondida: por que os negros africanos foram escravizados? A resposta que alguns historiadores elaboraram a essa pergunta reside em questões políticas e econômicas complexas. Não é tarefa fácil traduzir essa complexa resposta a crianças de aproximadamente 10 anos. Contudo, é preciso deixar um aspecto claro: a escravização dos negros africanos não ocorreu por conta de aspectos étnicos-raciais, e sim por conta de uma conjuntura histórica. Em outras palavras, os africanos não foram escravizados porque eram negros, mas porque uma série de fatores históricos contribuiu para que milhões de pessoas fossem transplantadas da África para América.
            A seção Companhia de Comércio do Grão Pará e Maranhão explica ao aluno um pouco essa série fatores históricos. Em suma, essa parte do texto procura explicar que foram por razões comerciais que milhares de africanos foram trazidos violentamente para a Amazônia. Tentaremos, agora, agregar alguns elementos explicativos para entender, grosso modo, o sistema escravista colonial. 
            Durante o período colonial, grosso modo entre 1500 e 1800, as potência europeias competiam pela hegemonia internacional. O sistema mercantilista era baseado numa imensa rede de trocas comerciais. Os impérios coloniais eram transatlânticos, ou seja, tinham territórios na Europa, América e importantes ramificações na África. Para se tornar uma potência hegemônica, esses impérios precisavam comerciar mais que os outros impérios. Em 1770, um terço do comércio europeu era movimentado por produtos coloniais vindos da América: açúcar, café, algodão e cacau (caribe); tabaco, arroz e anil (América do Norte); açúcar e ouro (América do Sul). Para realizar esse gigantesco comércio, os impérios precisavam da escravidão negra. Segundo Robin Blackburn, “a competição no mercado Atlântico afogou quaisquer escrúpulos que tivessem a respeito do comércio de africanos escravizados, de forçá-los a trabalhar nas plantations ou de ganhar dinheiro com o que os escravos produzissem”. (2002, p. 25) Ainda segundo o mesmo autor, “a nova cultura do cultura do consumo comercializado não tinha consciência do custo humano acarretado por seus prazeres.” (p. 26)           
            Vejamos, rapidamente, a evolução do sistema escravista colonial. Portugal foi a primeira potência europeia a explorar, a partir do século XV, o comércio de escravos. Tendo em vista que esse mercado já existia na África, os portugueses, ao navegarem pioneiramente em volta desse continente na busca por expansão comercial, exploraram, entre outros produtos, o produto humano.  Ao colonizar o Brasil, transplantaram africanos para América, sobretudo para o desenvolvimento da cultura do açúcar no nordeste. No século XVII, quando França e Inglaterra se tornaram as maiores potências europeias, deixando os países ibéricos (Portugal e Espanha) para trás, esse comércio – o comércio transatlântico de seres humanos –  foi transformado de forma drástica. Para serem as maiores potências,  França e Inglaterra tinham impérios colôniais organizadíssimos. Parte dessa organização servia para que centenas de navios cruzassem um oceano e trouxessem, no final do século XVIII, cerca de 600 mil africanos por ano para América. Blackburn divide o sistema escravista colonial em dois momentos: escravidão acessória (1400 a 1654), momento em os países ibéricos eram as maiores potências, e escravidão sistêmica (1654 a 1770), quando Inglaterra e França passaram a ser os mais poderosos impérios do oceano Atlântico.
Escravidão Acessória X Escravidão Sistêmica
Década
Escravos embarcados por ano da África para América
1560
12 mil
1650
60 mil
1760
600 mil







Adaptado de BLACKBURN (2002)

            
           A tabela acima demonstra como Inglaterra e França aumentaram o volume desse violentíssimo comércio entre a África e a América. Boa parte desses africanos tinha um destino, as ilhas do caribe.


Crescimento da população escrava na América (século XVIII)

Adaptado de BLACKBURN (2002)

            O gráfico acima demostra como esses dois impérios transatlânticos - França e Inglaterra – aumentaram o volume do tráfico negreiro no século XVIII de forma assustadora. A Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, citada durante o texto direcionado às crianças, foi fundada em 1755. Ela tinha o objetivo de imitar o sistema escravista inglês e francês, que era eficiente e gerava muito lucro. Os países mais pobres não tentam imitar o que fazem os países mais ricos? Pois é, Portugal estava muito atrasada em termos comerciais em relação às grandes potências do século XVIII. Portugal precisava, portanto, correr atrás do prejuízo para produzir riqueza.
            Voltemos à pergunta: por que os negros africanos foram escravizados? Ora, a escravidão já existia na África subsaariana no século XV. As potências europeias incentivaram que reinos e tribos africanas entrassem no interior do continente para, através da guerra, conseguir um produto valiosíssimo em enorme quantidade: o ser humano. Em outras palavras, os africanos não foram escravizados porque eram negros, mas porque uma série de fatores históricos contribuiu para que milhões de pessoas fossem transplantadas da África para América. Fatores políticos (competição entre impérios coloniais) e fatores econômicos (um sistema que tinha como uma das principais riquezas produtos tropicais produzidos por braços escravos).
            Em quarto e último lugar, é preciso fazer algumas reflexões sobre como abordar a história da África e da cultura afro-brasileira no ensino fundamental. Wilma de Nazaré Coelho e Mauro Cezar Coelho (2013) acreditam que, a abordar o tema, é preciso desvinculá-lo do racismo. Segundo os autores, “sempre que se fala em África e em Cultura Afro-Brasileira, se fala em racismo, em discriminação e em preconceito. Os prejuízos de posturas como essa são evidentes. O primeiro (e, talvez, o maior, se considerarmos os objetivos da disciplina) é a compreensão, por parte de crianças e adolescentes, de que o racismo é um fenômeno vinculado, exclusivamente, à África e aos africanos” (p. 78).
            Concordamos em parte com os autores. A ressalva que eles fazem é válida. Realmente, é desnecessário ficar, a todo momento, associando a história da África e a cultura afro-brasileira ao racismo. Que sejam trabalhados conteúdos relativos ao tema.  Que o precioso tempo em sala de aula não seja desperdiçado com um discurso moralista, um discurso de senso comum, que reitera a existência do racismo em nossa sociedade e prega o fim do preconceito. Nisso concordamos com os autores, pois a “a reincidência das vinculações do racismo e da discriminação ao caso africano obscurece o conteúdo de História da África, atribuindo-lhe um lugar distinto do que é ocupado por outros conteúdos históricos, marcadamente aqueles relacionados à Europa” (COELHO & COELHO, 2013, p. 78). Entretanto, acreditamos que em algum momento é preciso constatar a presença do racismo no dias atuais como um aspecto de permanência histórica. Isso é realizado na atividade 4 da seção Cardápio de Atividades, intitulada “Discurso do comandante”. Ademais, essa atividade coloca o aluno como um agente histórico transformador, capaz de atuar e transformar a realidade. Fica como sugestão convidar alguma autoridade policial e entregar ela a redação produzida pelas crianças. Ou, talvez, realizar uma visita a um quartel da Polícia Militar e reproduzir o discurso à tropa.
            De qualquer forma, a ressalva levantada pelos autores acima citados é válida: ensinar história da África e cultura afro-brasileira não é ficar, a todo momento, falando do problema do racismo em nossa sociedade. É preciso, acima de tudo, trabalhar conteúdos históricos.
            Wilma de Nazaré Coelho e Mauro Cezar Coelho ainda criticam a “compreensão presente na narrativa do mito, segundo a qual os povos africanos e indígenas contribuíram com a formação da nação e da nacionalidade com a alegria, o riso, as festas – enquanto que o trabalho, as decisões importantes e o rumo do país permanecem como atributo do branco” (2013, p. 78). Novamente, concordamos em parte com os autores. Realmente, apenas reiterar essa visão folclórica da cultura afro-brasileira pode ser prejudicial. O ensino da cultura afro-brasileira não pode apenas se resumir a elencar alguns aspectos pitorescos da contribuição negra em nossa nacionalidade. Contudo, para crianças de 10 anos, acreditamos ser importante lembrar que um dos símbolos do Estado, o Carimbó, teve importante contribuição africana. Acreditamos que essa lembrança é capaz de melhorar a autoestima da população afrodescendente e valorizar a presença negra na história do Pará. Mas atenção, o Pará é gigante, e o Carimbó, originário da região do Salgado, nordeste paraense, provavelmente não tem nenhum significado para a população que reside na parte sul do estado. A ideia de que essa dança é um símbolo estadual é uma construção. Cabe ao professor do sul do Pará desconstruir essa ideia. Ou, se preferir, reiterar essa construção.
            Por fim, é preciso ressaltar que a África precisa “passar a ser percebida na condição de continente, com povos, cultura e ambientes distintos” (COELHO & COELHO, 2013, p. 72). Nesse sentido, a realização da atividade 1 da seção Cardápio da atividades, intitulada “Mapa gigante da África”, torna-se imprescindível. Trata-se de um trabalho introdutório para entender a diversidade do continente africano. Sabemos que bantos e sudaneses constituem dois grandes grupos linguísticos. Os bantos, por exemplo, são formados por cerca de 400 subgrupos étnicos diferentes. A unidade desses subgrupos só pode ser justificada no âmbito linguístico, pois cada um deles têm como língua materna uma língua da família banta. Dentro do grande grupo linguístico dos sudaneses também existe uma imensa variedade de subgrupos étnicos, como, por exemplo, os  iorubas, gegês e fanti-ashantis. Acreditamos, porém, que para crianças de cerca de 10 anos seja suficiente destacar a existência da África árabe, da sudanesa e da banta. Talvez seja necessário fazer apenas uma menção a imensa diversidade existente dentro desses grandes grupos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLACKBURN, Blackburn. A queda do escravismo colonial. Rio de Janeiro / São Paulo : Record, 2002 [disponível on-line, no google books, com visualização parcial]
COLEHO, Wilma de Nazaré; COELHO, Mauro Cezar. “Os conteúdos étnico-raciais na educação brasileira: práticas em curso.” Educar em Revista.  Curitiba, Brasil, n. 47, p. 67-84, jan./mar. 2013 [disponível on-line].

SALLES, Vicente. O negro no Pará sob o regime da escravidão. Belém: IAP; Programa Raízes, 2005. 

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