Por Ariel Feldman
Em
primeiro lugar, cabe ressaltar que a importância da população africana na
formação do Pará foi pioneiramente revelada por Vicente Salles, em 1971, numa
virada historiográfica que suscitou uma série de pesquisas que ainda hoje são
realizadas. Arthur Cézar Ferreira Reis, prefaciando a 1ª edição de O Negro no Pará sob o regime da escravidão (1971),
resume bem a importância dessa obra:
A
presença do negro na Amazônia constituiu, durante muito tempo, assunto
desprezado, em termos de importância significante que teria essa mesma
presença. O que se sabia não permitia a verificação mais ampla do papel que o
negro africano pudesse ter desempenhado na região, onde as lavouras – do tipo
daquelas do nordeste nos ciclos da cana, do algodão e do tabaco, das províncias
fluminense e paulista, no ciclo do café, como era no Brasil-Central (Minas,
Mato Grosso e Goiás), no período mais intenso da exploração do ouro e diamantes
– eram lavouras sem a projeção das outras. Amazônia integrava-se no império
português na aventura do droga do sertão.
(...)Nessa aventura, a mão-de-obra, fácil, abundante e a única que se poderia
mobilizar com sucesso imediato, era a mão-de-obra dos aborígines.
(...)
A
bibliografia sobre a presença africana na Amazônia, consequentemente, nunca foi
expressiva (...). A bibliografia (...) [era] de uma pobreza franciscana e que
não conduzia senão àquela ideia primeira – o negro, na Amazônia, não representava
um papel na dinâmica-social, cultural e econômica.
(...)
O
livro que agora se edita (...), de autoria de Vicente Salles, vem situar o
problema em seus devidos termos(...). Ao invés de uma presença insignificante,
a do negro, na verdade fora, senão maior em conflito com a indígena, de uma
significação ponderável, muito ponderável. Vicente Salles, com o Negro no Pará, pretende, escreve ele,
apresentar uma “interpretação”. Pretende que o negro “não deixou de plasmar aí
sua personalidade, de influir étnica e culturalmente, além de constituir
durante todo o regime da escravidão, o suporte da economia agrária”. (Apud.
SALLES, 2005).
Em segundo lugar, cabe ressaltar, que esse material, O Negro na História do Pará, tem como um dos objetivos entender o negro como um agente ativo na
história. A ideia é romper com uma visão que apenas enxerga o escravo como
vítima passiva. Sem negar o sofrimento e a violência de uma sociedade
escravista, mas também sem conferir a esse aspecto o lugar central desse material,
objetiva-se enxergar o negro como parte do processo histórico. Nesse sentido,
ganha destaque a redação criativa. Nessa
atividade, o aluno se coloca no lugar de uma criança escrava em fuga, narrando,
em primeira pessoa, o papel de agente histórico que essa pessoa exerceu.
Em terceiro lugar, é preciso tentar
responder a uma pergunta que muitas vezes é mal respondida: por que os negros
africanos foram escravizados? A resposta que alguns historiadores elaboraram a
essa pergunta reside em questões políticas e econômicas complexas. Não é tarefa
fácil traduzir essa complexa resposta a crianças de aproximadamente 10 anos.
Contudo, é preciso deixar um aspecto claro: a escravização dos negros africanos
não ocorreu por conta de aspectos étnicos-raciais, e sim por conta de uma
conjuntura histórica. Em outras palavras, os africanos não foram escravizados
porque eram negros, mas porque uma série de fatores históricos contribuiu para que
milhões de pessoas fossem transplantadas da África para América.
A seção Companhia de Comércio do Grão Pará e Maranhão explica ao aluno um
pouco essa série fatores históricos. Em suma, essa parte do texto procura
explicar que foram por razões comerciais que milhares de africanos foram trazidos
violentamente para a Amazônia. Tentaremos, agora, agregar alguns elementos
explicativos para entender, grosso modo, o sistema escravista colonial.
Durante o período colonial, grosso
modo entre 1500 e 1800, as potência europeias competiam pela hegemonia
internacional. O sistema mercantilista era baseado numa imensa rede de trocas
comerciais. Os impérios coloniais eram transatlânticos, ou seja, tinham
territórios na Europa, América e importantes ramificações na África. Para se
tornar uma potência hegemônica, esses impérios precisavam comerciar mais que os
outros impérios. Em 1770, um terço do comércio europeu era movimentado por
produtos coloniais vindos da América: açúcar, café, algodão e cacau (caribe);
tabaco, arroz e anil (América do Norte); açúcar e ouro (América do Sul). Para
realizar esse gigantesco comércio, os impérios precisavam da escravidão negra.
Segundo Robin Blackburn, “a competição no mercado Atlântico afogou quaisquer
escrúpulos que tivessem a respeito do comércio de africanos escravizados, de
forçá-los a trabalhar nas plantations ou de ganhar dinheiro com o que os
escravos produzissem”. (2002, p. 25) Ainda segundo o mesmo autor, “a nova
cultura do cultura do consumo comercializado não tinha consciência do custo
humano acarretado por seus prazeres.” (p. 26)
Vejamos, rapidamente, a evolução do
sistema escravista colonial. Portugal foi a primeira potência europeia a
explorar, a partir do século XV, o comércio de escravos. Tendo em vista que
esse mercado já existia na África, os portugueses, ao navegarem pioneiramente
em volta desse continente na busca por expansão comercial, exploraram, entre
outros produtos, o produto humano. Ao
colonizar o Brasil, transplantaram africanos para América, sobretudo para o
desenvolvimento da cultura do açúcar no nordeste. No século XVII, quando França
e Inglaterra se tornaram as maiores potências europeias, deixando os países
ibéricos (Portugal e Espanha) para trás, esse comércio – o comércio
transatlântico de seres humanos – foi
transformado de forma drástica. Para serem as maiores potências, França e Inglaterra tinham impérios colôniais
organizadíssimos. Parte dessa organização servia para que centenas de navios
cruzassem um oceano e trouxessem, no final do século XVIII, cerca de 600 mil
africanos por ano para América. Blackburn divide o sistema escravista colonial
em dois momentos: escravidão acessória
(1400 a 1654), momento em os países ibéricos eram as maiores potências, e escravidão sistêmica (1654 a 1770), quando
Inglaterra e França passaram a ser os mais poderosos impérios do oceano Atlântico.
Escravidão Acessória X Escravidão
Sistêmica
Década
|
Escravos
embarcados por ano da África para América
|
1560
|
12
mil
|
1650
|
60
mil
|
1760
|
600
mil
|
Adaptado de BLACKBURN (2002)
A tabela acima demonstra como
Inglaterra e França aumentaram o volume desse violentíssimo comércio entre a
África e a América. Boa parte desses africanos tinha um destino, as ilhas do
caribe.
Crescimento
da população escrava na América (século XVIII)
Adaptado de BLACKBURN (2002)
O gráfico acima demostra como esses
dois impérios transatlânticos - França e Inglaterra – aumentaram o volume do
tráfico negreiro no século XVIII de forma assustadora. A Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, citada durante o texto direcionado às crianças,
foi fundada em 1755. Ela tinha o objetivo de imitar o sistema escravista inglês
e francês, que era eficiente e gerava muito lucro. Os países mais pobres não
tentam imitar o que fazem os países mais ricos? Pois é, Portugal estava muito
atrasada em termos comerciais em relação às grandes potências do século XVIII.
Portugal precisava, portanto, correr atrás do prejuízo para produzir riqueza.
Voltemos à pergunta: por que os
negros africanos foram escravizados? Ora, a escravidão já existia na África subsaariana
no século XV. As potências europeias incentivaram que reinos e tribos africanas
entrassem no interior do continente para, através da guerra, conseguir um
produto valiosíssimo em enorme quantidade: o ser humano. Em outras palavras, os
africanos não foram escravizados porque eram negros, mas porque uma série de
fatores históricos contribuiu para que milhões de pessoas fossem transplantadas
da África para América. Fatores políticos (competição entre impérios coloniais)
e fatores econômicos (um sistema que tinha como uma das principais riquezas
produtos tropicais produzidos por braços escravos).
Em quarto e último lugar, é preciso
fazer algumas reflexões sobre como abordar a história da África e da cultura
afro-brasileira no ensino fundamental. Wilma de Nazaré Coelho e Mauro Cezar
Coelho (2013) acreditam que, a abordar o tema, é preciso desvinculá-lo do
racismo. Segundo os autores, “sempre que se fala em África e em Cultura
Afro-Brasileira, se fala em racismo, em discriminação e em preconceito. Os prejuízos
de posturas como essa são evidentes. O primeiro (e, talvez, o maior, se
considerarmos os objetivos da disciplina) é a compreensão, por parte de
crianças e adolescentes, de que o racismo é um fenômeno vinculado, exclusivamente,
à África e aos africanos” (p. 78).
Concordamos em parte com os autores.
A ressalva que eles fazem é válida. Realmente, é desnecessário ficar, a todo
momento, associando a história da África e a cultura afro-brasileira ao
racismo. Que sejam trabalhados conteúdos relativos ao tema. Que o precioso tempo em sala de aula não seja
desperdiçado com um discurso moralista, um discurso de senso comum, que reitera
a existência do racismo em nossa sociedade e prega o fim do preconceito. Nisso
concordamos com os autores, pois a “a reincidência das vinculações do racismo e
da discriminação ao caso africano obscurece o conteúdo de História da África,
atribuindo-lhe um lugar distinto do que é ocupado por outros conteúdos
históricos, marcadamente aqueles relacionados à Europa” (COELHO & COELHO,
2013, p. 78). Entretanto, acreditamos que em algum momento é preciso constatar
a presença do racismo no dias atuais como um aspecto de permanência histórica.
Isso é realizado na atividade 4 da seção Cardápio de Atividades, intitulada “Discurso do comandante”. Ademais, essa atividade
coloca o aluno como um agente histórico transformador, capaz de atuar e
transformar a realidade. Fica como sugestão convidar alguma autoridade policial
e entregar ela a redação produzida pelas crianças. Ou, talvez, realizar uma
visita a um quartel da Polícia Militar e reproduzir o discurso à tropa.
De qualquer forma, a ressalva
levantada pelos autores acima citados é válida: ensinar história da África e cultura
afro-brasileira não é ficar, a todo momento, falando do problema do racismo em
nossa sociedade. É preciso, acima de tudo, trabalhar conteúdos históricos.
Wilma de Nazaré Coelho e Mauro Cezar
Coelho ainda criticam a “compreensão presente na narrativa do mito, segundo a qual
os povos africanos e indígenas contribuíram com a formação da nação e da
nacionalidade com a alegria, o riso, as festas – enquanto que o trabalho, as decisões
importantes e o rumo do país permanecem como atributo do branco” (2013, p. 78).
Novamente, concordamos em parte com os autores. Realmente, apenas reiterar essa
visão folclórica da cultura afro-brasileira pode ser prejudicial. O ensino da
cultura afro-brasileira não pode apenas se resumir a elencar alguns aspectos
pitorescos da contribuição negra em nossa nacionalidade. Contudo, para crianças
de 10 anos, acreditamos ser importante lembrar que um dos símbolos do Estado, o
Carimbó, teve importante contribuição africana. Acreditamos que essa lembrança
é capaz de melhorar a autoestima da população afrodescendente e valorizar a
presença negra na história do Pará. Mas atenção, o Pará é gigante, e o Carimbó,
originário da região do Salgado, nordeste paraense, provavelmente não tem
nenhum significado para a população que reside na parte sul do estado. A ideia
de que essa dança é um símbolo estadual é uma construção. Cabe ao professor do
sul do Pará desconstruir essa ideia. Ou, se preferir, reiterar essa construção.
Por fim, é preciso ressaltar que a
África precisa “passar a ser percebida na condição de continente, com povos,
cultura e ambientes distintos” (COELHO & COELHO, 2013, p. 72). Nesse
sentido, a realização da atividade 1 da seção Cardápio da atividades, intitulada “Mapa gigante da África”,
torna-se imprescindível. Trata-se de um trabalho introdutório para entender a
diversidade do continente africano. Sabemos que bantos e sudaneses constituem
dois grandes grupos linguísticos. Os bantos, por exemplo, são formados por
cerca de 400 subgrupos étnicos
diferentes. A unidade desses subgrupos só pode ser justificada no âmbito linguístico, pois cada um deles têm como língua materna uma língua da família banta. Dentro do grande grupo linguístico dos sudaneses também
existe uma imensa variedade de subgrupos étnicos, como, por exemplo, os iorubas, gegês e fanti-ashantis.
Acreditamos, porém, que para crianças de cerca de 10 anos seja suficiente
destacar a existência da África árabe, da sudanesa e da banta. Talvez seja
necessário fazer apenas uma menção a imensa diversidade existente dentro desses
grandes grupos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLACKBURN, Blackburn. A queda do escravismo colonial. Rio de Janeiro / São Paulo :
Record, 2002 [disponível on-line, no google books, com
visualização parcial]
COLEHO,
Wilma de Nazaré; COELHO, Mauro Cezar. “Os conteúdos étnico-raciais na educação brasileira:
práticas em curso.” Educar em Revista.
Curitiba, Brasil, n. 47, p. 67-84,
jan./mar. 2013 [disponível on-line].
SALLES,
Vicente. O negro no Pará sob o regime da
escravidão. Belém: IAP; Programa Raízes, 2005.
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